Mito, Razão e Jornalismo





Por Camila Carvalho e Pedro Augusto Proença




Desde os tempos primórdios a humanidade tem sua realidade permeada por mitos. Por exemplo, na Grécia antiga havia o do minotauro, na época das Grandes Navegações o oceano Atlântico era tido como o “mar tenebroso” no qual habitavam toda sorte de criaturas mágicas e perigosas e alguns que sobreviveram a Idade Média como a crença em bruxa e demônios.
“Há a mitologia que relaciona você com sua própria natureza e com o mundo natural, de que você é parte. E há a mitologia estritamente sociológica, que liga você a uma sociedade particular” (Campbell, 1990:24).
Essa sentença ilustra a amplitude das espécies mitológicas e como elas interferem no cotidiano dos seres humanos. Se por um lado representa valores universais, por outro, expõe as peculiaridades de uma sociedade. A concepção de herói, por exemplo, em todas as culturas ele apresenta bons valores como a nobreza de espírito, a coragem e o altruísmo. Porém, todos eles possuem características próprias da cultura da qual provém.
Os mitos possuem uma razão de ser, não estão no mundo por acaso. A mitologia pode ter uma função de alentar, dar esperanças e expandir horizontes dos indivíduos de modo que não fiquem totalmente presos a matéria. Para a alma só o real não basta, é preciso transcendê-lo. A própria idéia de herói tem tal função, ao ver encarnado tanta honradez e sacrifício em uma só pessoa, o ser humano passa a ser mais confiante e ter mais força para enfrentar uma situação. Outro caso é o da religião com seus mártires e, no caso dos católicos, os santos. Para ilustrar, pode-se tomar um personagem que se adapte simultaneamente aos dois casos: Joana D’Arc, heroína francesa que restituiu a moral de seu país na Guerra dos Cem anos, foi morta pela igreja e apenas nesse século canonizada.
A razão, enquanto idéia de pensamento, métodos e experiências, criticam o mito enquanto “crendice” ou dogma. Nos portões da Idade Moderna, Galileu, Copérnico e outros ajudaram a fazer cair por terra a teoria geocêntrica e provaram a heliocêntrica- segundo a qual a terra gira em torno do sol, este é seu centro-. Alguns cientistas mistificaram a razão, ela ganhou um ar de infalibilidade e uma arrogância de quem se vê acima do bem e do mal. Evidentemente que a concepção racional é válida e contribuiu muito para a humanidade. No entanto, ela não é “a” forma de conceber o mundo, mas apenas uma das formas. Há a possibilidade de equilibrar mito e razão e usá-los cada qual em seu contexto. Mito e razão estão próximos, o mito tem uma razão de existir e a razão, um afã de se mitificar.
A transmissão do mito sempre se deu pela comunicação. Seja nos tempos medievais nos quais o hostil mundo dos camponeses fez com que criassem riquíssima tradição oral de contos nos quais era exposto seu universo iníquo retratando árduo trabalho, mortes e lascívia, aos mitos de formação dos estados nacionais no século XIX – reforçados por símbolos que remetem a um passado glorioso e a um futuro promissor como hinos e bandeiras
. O que tais mitos aparentemente dissociados têm em comum? Ora, ambos são passados de geração em geração. Contudo, os seres humanos têm o hábito de aumentar certas histórias. Um conto do século IX será diferente no século XI e talvez irreconhecível no XIII. A humanidade cria, inventa, reinventa, apaga, acrescenta, valoriza, desvaloriza. O mesmo ocorre com as tradições que fundamentam uma identidade nacional. Há muitos fatos que são deliberadamente olvidados e outros que passam a ter uma dimensão gigantesca. Por exemplo, o hino nacional português retoma a grandeza do pioneirismo luso nas navegações e foi composto em um momento que o orgulho nacional lusitano foi humilhado por um ultimato inglês:
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente e imortal
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós
Que há-de guiar-te à vitória!
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar

Era impossível enfrentar os ingleses, mas era preciso resgatar e pintar com cores vivas e acordes vibrantes as glórias do império. O jornalismo é mais forte na formação de mitos que a tradição oral e ajudou muito na criação dos estados nacionais do XIX. Por ter um alcance muito maior, a imprensa mitifica personalidades e regimes. O jornal Marca da Espanha ajudou a supervalorizar o governo de Franco e criar idéia de “hispanidad” ou o personagem Che Guevara, que foi posto em um pedestal, virou um símbolo de luta dos estudantes de 1968.Sua transcendência e carisma, em grande parte, se deve a uma foto no qual o argentino aparece com o olhar perdido no horizonte.
Enfim, o mito está tão presente na razão e no jornalismo quanto estes naquele. É um ciclo que ajuda o homem a constriur seu imaginário.


BIBLIOGRAFIA

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito - 1990.